Denise Espírito Santo
Instituto de Artes da UERJ, maio de 2015.
Os Famosos Vestibulares de Fernando Diniz
Desenhando tanta coisa, vai se descobrindo tudo... é o nome da exposição que o Instituto de Artes da UERJ, o Museu de Imagens do Inconsciente e o Departamento Cultural da Sub-Reitoria de Extensão e Cultura da UERJ têm o prazer de apresentar na simpática galeria Candido Portinari neste outono de 2015.Chego até Fernando Diniz e ao seu fabuloso universo das imagens, através da poesia de Stela do Patrocínio – mulher, negra que mais parecia uma rainha que, de posse de um pequeno gravador e algumas fitas cassetes, deixou impressas no ar rarefeito da Colônia Juliano Moreira as vozes de sua poesia singular – obra testemunho marcada pela experiência do choque e da loucura, que logrou reencarnar aquela dimensão ancestral da poesia como obra de arte performativa, poesia que dinamiza no presente as potências vocais da humanidade do passado.
E o que poderíamos aqui aludir do aparente elo comunal/espiritual entre Fernando Diniz, o artista que por anos foi delicadamente gestado nos ateliês, pátios e galerias de um outro ambiente asilar, neste caso, o Centro Psiquiátrico Pedro II no Engenho de Dentro, com Stela do Patrocínio, interna por quase quatro décadas na Colônia Juliano Moreira, senão uma experiência singular com os terreiros da criação e a profusão de obras artísticas que diferem do “normativo” e alcançam a profundidade e a abertura sui-generis que os “diferentes estados do ser” motivam, secretam e/ou inspiram. Aprendemos com a Dra. Nise da Silveira, pioneira escafandrista na arte de mergulhar fundo nas imagens do inconsciente de seus “clientes”, que as composições seriais como as mandalas, as cores expressivas e latentes transplantadas para telas e desenhos, as formas abstratas e figurativas, comunicam sobre o poder curativo da arte. Na sua capacidade inconteste de perfurar as camadas epidérmicas do real, as produções plásticas dos “clientes” de Dra. Nise, laboriosamente encarnadas nos ateliês do hospital, teriam um poder transcendente de reorganizar o ego cindido e a psique fraturada: “...a criatividade reúne em si várias funções psicológicas importantes para a reestruturação da psique. O que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade”, nas palavras da Dra. Nise Silveira.
Não fosse essa expansão do sujeito compositor que habita todos e qualquer um de nós, possibilitando aberturas inigualáveis e marcantes para as trajetórias de Fernando Diniz e de Stela do Patrocínio, mas que arrebataria também a existência de um outro artista genial, Arthur Bispo do Rosário, poderíamos aqui evocar as palavras de Derrida quando se debruça sobre a obra de Artaud, inclinando-se a pensar sobre esta “palavra soprada” que se manifesta no cerne de uma obra em constante aventura; esta obra “vem testemunhar, em exemplo, em martírio... uma estrutura cuja permanência essencial se procura em primeiro lugar decifrar.”
O que esse novo campo dos estudos sobre as imagens do inconsciente quer defender, qual a dimensão política deste trabalho e qual legado que algumas destas proposições ensejaram desde a década de 1970 até o presente, no âmbito das políticas públicas para a saúde mental? Hoje em dia, quando nos deparamos com alguns projetos que promovem atividades diversas com as linguagens do teatro, da música, da poesia e literatura, das artes plásticas, do cinema, em centros psiquiátricos, hospitais públicos, unidades de atendimento psiquiátrico (como será o caso do ateliê de cerâmica, atualmente em funcionamento no Hospital Universitário Pedro Ernesto), constatamos o importante legado da Dra. Nise para o estabelecimento de um novo paradigma clínico: a arte vigora e propõe a superação numa escala histórica dos métodos violentos, reiteradamente postos a disposição de todo o sistema hospitalar, como o eletrochoque, o coma insulínico e, um pouco mais tarde, as camisas de força. Ao escolher o rumo da terapêutica ocupacional, Nise inaugura um trabalho revolucionário que permitiu a criação de um dos acervos mais importantes do mundo em se tratando das poderosas imagens do inconsciente.
Os desenhos e as telas aqui expostos de Fernando perfazem um percurso de quase 50 anos de trabalho contínuo nos ateliês do Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje conhecido como Museu de Imagens do Inconsciente; suas séries conhecidas, como “Cinema” e “Japonesa”, refletem diferentes motivações pessoais e influências diversas – da física quântica à teoria do caos, do misterioso mundo do cinema, interesse que, por sinal, deu lugar à única produção de audiovisual de Fernando, o curta “Estrela de oito pontas”, realizado na década de 1980 com Marcos Magalhães. Há que se pensar também que para um artista que possui (isto em números especulativos, não exatos), cerca de 28.000 obras, o recorte que ora apresentamos, um singelo, porém representativo elenco de 14 obras, dificilmente irá permitir o franco acesso ao fabuloso mundo das imagens de Fernando, sugestão apenas repisada na tentativa de convidar o curioso espectador para uma exploração mais subterrânea nesta arqueologia de imagens sublimes e catalisadoras do afeto em Fernando Diniz.
E, como fechamento para essa breve resenha acerca da obra de Fernando Diniz, deixo duas notas: a primeira da Dra. Nise e a segunda de Mario Pedrosa; nelas redescobrimos a amizade entre essas duas figuras importantes do mundo da ciência e da cultura, que contribuíram para tornar o acervo e as obras desses artistas originais ao alcance de todos nós; à Fernando, Stela, Nise e Mário erguemos neste dia nossos olhos e lançamos nossos afetos catalisadores que agrupam-se em cores, formas, movimento, ritmo, luz e expressão.
“Fernando, que frequenta nosso ateliê, representa a ambição por linhas quebradas, muito cerradas umas contra as outras. Mostrando-as, disse-me: eu sou ambicioso... numa pintura a que deu o nome de ‘árvore das emoções’, revelou um código de significação das cores que nos pode guiar no estudo de suas pinturas. Para ele, o amarelo é glória; o rosa, amor; o branco, ânsia; o marrom, paixão; o azul pro- fundo, ciúme. Sem a pintura, não saberíamos que aquele homem de aspecto humilde e face impassível fosse ambicioso, nem que no seu mundo interno tivesse raízes a árvore de intensas emoções.”
(SILVEIRA, Nise. In: Senhora das imagens internas. Escritos dispersos de Nise da Silveira. Organização de Martha Pires Ferreira. Rio de Janeiro: Cadernos da Biblioteca Nacional, 2008, p. 110)
“Fernando é um artista sem temática transcendente... Depois dos choques iniciais do inconsciente, que lhe perturbaram o ego na rotina do espaço vivido, foi que lhe foram abertas as portas do Centro Psiquiátrico Pedro II. Fernando como que não teve surpresas quando conduzido ao ateliê de pintura da Seção de Terapêutica Ocupacional, e ali se comportou como se estivesse a estudar numa escola.”
(PEDROSA, Mario. In: Catálogo de exposição Universo de Fernando Diniz. Coleção Museus do Brasil, volume II, Funarte, 1980)
Uma nota: A exposição “Desenhando tanta coisa, vai se descobrindo tudo” é um projeto fruto de uma inédita parceria integrando as seguintes instituições: Museu de Imagens do Inconsciente, Instituto de Artes da UERJ, Unidade Docente e de Atendimento Psiquiátrico do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Departamento Cultural da UERJ, Sub-Reitoria de Extensão e Cultura da UERJ, os projetos Zonas de Contato e Ateliê de múltiplas linguagens, além de inúmeros companheiros que aceitaram participar desta exposição motivados fundamentalmente pela alegria que o contato com a obra de Fernando Diniz nos proporciona; a todas as pessoas somos profundamente agradecidos.
https://web.facebook.com/Exposi%C3%A7%C3%A3o-Fernando-Diniz-1407128522948620/
Fonte Facebook (acesso 07/04/2021)
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